Impacto do Coronavírus (COVID-19) nos contratos com o Estado
Estas incluem, por um lado, limitações à circulação e aglomeração de pessoas e, por outro, aquelas que visam mitigar o impacto social e econômico de tais restrições. Isso, logicamente, acentuou a complexa conjuntura econômica que nosso país - em grande parte importador - já vinha enfrentando, como resultado de medidas restritivas do comércio exterior adotadas em outros países já afetados pelo Coronavírus.
Nesse sentido, a diminuição, o retardamento e - em alguns casos - a paralisação da produção, importação e comercialização de bens e prestação de serviços que implica o combate à pandemia gerou enormes dificuldades na execução de contratos de toda natureza, o que impõe um estudo dos mecanismos contratuais e normativos - que chamaremos de “mecanismos de defesa” - que permitam proteger a parte que foi dificultada ou impedida de cumprir com suas obrigações pelas causas mencionadas anteriormente.
Sem prejuízo de que uma consultoria responsável sobre um aspecto contratual tão importante diante de uma situação tão singular requer um estudo particular de cada caso concreto, o presente pretende esboçar uma série de considerações gerais e preliminares sobre os efeitos da pandemia do vírus COVID-19 nos contratos em que uma das partes é um organismo público estatal, levando em consideração as particularidades de seu regime jurídico e o objetivo final que esses contratos buscam: a satisfação do interesse público.
Onde estão previstos os mecanismos eventualmente aplicáveis aos contratos públicos diante do surto pandêmico do vírus COVID-19?
A busca pela resposta a esta pergunta enfrenta uma primeira dificuldade consistente em que, salvo raras exceções (como é o caso do regime de contratos de Participação Público-Privada), nossa normativa vigente em matéria de contratação administrativa é abundante na regulamentação dos aspectos procedimentais relativos à escolha do co-contratante do Estado, não assim em relação à execução do contrato que nasce com a adjudicação. O mesmo acontece com os editais de condições particulares e os contratos - que geralmente se limitam a replicar as disposições dos editais - que regem cada contratação específica.
Nesse sentido, no que diz respeito especificamente à execução contratual, tanto a normativa como os editais de condições particulares e os contratos frequentemente contêm disposições referentes a: a possibilidade de cessão do contrato e/ou dos créditos emergentes do mesmo; a possibilidade de subcontratação; a possibilidade de aumento e diminuição das prestações objeto do contrato e regime sancionatório diante de descumprimentos do contratante. Pelo contrário, não são habituais as previsões relativas à incidência de fatores alheios às partes na normal execução dos contratos administrativos.
Em função do exposto, nos casos em que nem o contrato (se houver contrato escrito) nem o edital de condições particulares aplicável à contratação em questão contemplarem situações como as que nos ocupam, deverá ser considerada a normativa aplicável especificamente a essa contratação, a normativa e princípios gerais correspondentes à contratação administrativa e, na falta das anteriores, a normativa e princípios aplicáveis à contratação como um todo.
Quais são esses mecanismos de defesa?
Antes de detalhar os mecanismos eventualmente aplicáveis aos contratos públicos como consequência do surto pandêmico do Coronavírus, cabe ressaltar, precisamente, que a aplicabilidade de uns e outros dependerá se o contratante cumpriu com suas obrigações, mas de forma excessivamente sacrificada, ou se diretamente se vê impossibilitado de cumpri-las de forma temporária ou definitiva.
a) indenização ao contratante por danos e prejuízos sofridos pelo cumprimento de suas obrigações contratuais
A circunstância de que os contratos públicos constituem um meio para a satisfação do interesse público não pode supor que isso seja alcançado mediante um sacrifício econômico irreparável do contratante.
Nesse sentido, em nível geral e fundamentalmente nos contratos de execução diferida ou continuada, foi reconhecido a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro como um dos direitos essenciais que todo contratante tem frente ao organismo estatal contratante, independentemente de estar ou não expressamente reconhecido no contrato. Esse direito consiste na preservação da situação econômico-financeira considerada inicialmente pelo contratante no momento de formular sua oferta - posteriormente aceita pela Administração com a adjudicação -, diante de determinadas circunstâncias alheias às partes que se verificam durante a execução do contrato e alteram o esquema econômico-financeiro original.
Com base nesse fundamento, nossos tribunais têm adotado uma série de teorias, dentre as quais interessa destacar para esses efeitos as chamadas “teoria das sujeições imprevistas” e “teoria do fato do príncipe”, podendo cada uma delas ser aplicada em função do impacto que a pandemia do vírus COVID-19 teve ou tem sobre o contrato.
Do ponto de vista da primeira delas, a equação econômico-financeira do contrato é alterada por eventos materiais anormais que, embora objetivamente existissem no momento da formulação da oferta e do subsequente nascimento do contrato, não foram previstos (em sua ocorrência ou em sua magnitude) pelas partes. Pense nos contratos que foram celebrados no final de 2019, quando o vírus COVID-19 estava apenas se espalhando na China, não prevendo as partes naquela época que pouco tempo depois estariam diante de uma pandemia com as repercussões que está tendo.
Do ponto de vista da “teoria do fato do príncipe”, a execução do contrato se torna excessivamente onerosa para o contratante em razão de uma medida geral ou particularmente dirigida a ele, adotada pela Administração (há quem entenda que deve ser o organismo contratante e quem sustente que pode ser qualquer organismo estatal) e não prevista pelas partes no momento da celebração do contrato. Poderia-se pensar, nesse sentido, em algumas das medidas tomadas pelo Poder Executivo, no âmbito da emergência sanitária nacional declarada em 13 de março.
Nas duas hipóteses mencionadas anteriormente, poderia ser devido ao contratante o pagamento de uma compensação integral que indenize os danos e prejuízos sofridos pelo cumprimento de suas obrigações em circunstâncias alheias e imprevistas. Essa indenização pode se materializar de formas diferentes, dependendo do tipo de contrato em questão, uma vez que, no caso das concessões de obra pública e nos contratos de participação público-privada que preveem essa forma de remuneração, poderia consistir em um aumento nas tarifas de pedágio. Uma solução semelhante seria aplicável às concessões de serviços públicos (por exemplo, o transporte coletivo de passageiros).
b) justificação do descumprimento e exoneração de responsabilidade
Nos casos em que a pandemia do vírus COVID-19 direta ou indiretamente - através das medidas adotadas pelas autoridades a esse respeito - impeça temporária ou definitivamente o contratante de cumprir suas obrigações, em função das circunstâncias do caso concreto, poderia-se analisar a possibilidade de considerar o surto pandêmico como um evento de “Força Maior”.
Isso significaria que o descumprimento definitivo ou o cumprimento tardio do contratante seja considerado justificado e não seja necessário indenizar o organismo estatal contratante pelos danos e prejuízos que isso causar e, no caso de a obrigação definitivamente descumprida ser essencial, poderia ocorrer a rescisão do contrato.
Podem configurar eventos de “Força Maior” aqueles fatos alheios à vontade das partes contratantes, não previstos por elas no momento da contratação e irresistíveis - inevitáveis - para a parte que alega.
Entende-se que esse mecanismo é aplicável mesmo nos casos em que não tenha sido expressamente previsto no contrato respectivo.
c) renegociação do contrato
A finalidade de satisfação do interesse público dos contratos em questão e os princípios de conservação dos contratos públicos e manutenção da equação econômico-financeira dos mesmos poderiam abrir a possibilidade para que as mesmas partes que celebraram o contrato procedam a modificá-lo, procurando superar circunstâncias externas, supervenientes e imprevistas que coloquem em risco sua continuidade. Se não for admitido tal mecanismo, as repercussões da pandemia do vírus COVID-19 levariam à rescisão de muitos contratos - principalmente aqueles com prazo prolongado -, com o consequente risco de comprometimento do serviço estatal ao qual servem e a necessidade de realização de um novo procedimento de contratação, com todas as consequências que isso acarreta.
No entanto, não se pode perder de vista que se trata de um mecanismo excepcional que deve ser empregado com extrema cautela, uma vez que implica uma modificação das condições contratuais que fizeram parte das bases do procedimento de contratação, com o que os demais participantes do mesmo poderiam considerar violada a igualdade dos ofertantes e formular as reclamações correspondentes. Para evitar essa contingência, é fundamental determinar com a maior objetividade possível que qualquer um dos demais ofertantes, se tivesse sido o adjudicatário, teria sido igualmente prejudicado diante das novas circunstâncias que tornam necessária a modificação contratual.
Os já mencionados princípios de conservação dos contratos públicos e de manutenção da equação econômico-financeira dos mesmos impõem a renegociação contratual sem necessidade de previsão normativa ou contratual expressa, sem prejuízo do fato de que esse mecanismo tem reconhecimento explícito na regulamentação de determinados tipos de contratos, como os de Participação Público-Privada.
Aspectos relevantes a serem considerados:
- Definir claramente quais são as obrigações afetadas diretamente e inevitavelmente pela pandemia e suas repercussões e em relação às quais se procurará mobilizar os mecanismos analisados, tendo em mente que essa situação não pode ser usada como desculpa para justificar descumprimentos pré-existentes ou relacionados a outras causas.
- Analisar o contrato (se existir) para buscar mecanismos que contemplem situações como a que nos ocupa e a forma de proceder diante delas.
- Diante da falta de contrato ou da inexistência de disposições contratuais relativas a esse tipo de situações, analisar e buscar orientação sobre a normativa aplicável ao objeto específico do contrato em questão.
- Tomar todas as medidas possíveis para evitar ou, pelo menos, mitigar as consequências da pandemia sobre o contrato.
- Notificar o organismo estatal contratante, com a maior antecedência possível, sobre a possibilidade de um descumprimento temporário ou definitivo das obrigações contratuais e manter uma comunicação fluída sobre os avanços da situação.
- Documentar a situação específica com base na qual se pretenda mobilizar algum dos mecanismos vistos, bem como as medidas tomadas para evitar ou mitigar as consequências danosas da pandemia.
Dr. Juan Pablo Díaz
Montevidéu, 27 de março de 2020.