Reorganização empresarial e insolvência em tempos de COVID-19
Neste contexto, é provável que muitas empresas entrem em estado de insolvência, definido pelo artigo 1º da Lei 18.387 (Lei de Concursos e Reorganização Empresarial - LCRE) como aquele em que o devedor se encontra quando “… não pode cumprir com suas obrigações”.
Se isso ocorrer, uma ferramenta legal importante que as empresas poderão considerar recorrer é o acordo privado de reorganização (APR) previsto na LCRE, do qual muito se fala nos dias de hoje, e sobre o qual já nos referimos anteriormente (https://www.castellan.com.uy/es/noticias/54/alternativa-al-concurso-de-acreedores-el-acuerdo-privado-de-reorganizacion-apr.html). Agora, se um APR não for viável e/ou conveniente no caso concreto, a solicitação de seu próprio concurso judicial poderá ser uma ferramenta necessária e/ou conveniente.
A empresa devedora tem o dever de solicitar seu próprio concurso? Existe algum prazo?
Conforme o artigo 10 da LCRE a empresa em estado de insolvência tem “… a obrigação de solicitar seu próprio concurso”, e deve fazê-lo preceptivamente “dentro dos trinta dias seguintes a que tenha conhecido ou deveria ter conhecido seu estado de insolvência”.
Quais são as consequências de não solicitar o concurso tempestivamente?
a) o risco de que seja um credor quem o solicite previamente: o concurso pode ser solicitado não apenas pela própria empresa devedora (concurso voluntário), mas também por um credor, estando nestes casos diante do que se qualifica como “concurso necessário”. De fato, a própria LCRE procura incentivar os credores a pedirem o concurso das empresas devedoras, atribuindo-lhes no artigo 110 a natureza de crédito privilegiado a 50% do montante do crédito do credor solicitante; e facilitando a solicitação concursal, exigindo-lhes uma quantidade de requisitos sensivelmente inferior aos que são pedidos à própria empresa devedora.
A preparação da solicitação concursal pela própria empresa devedora demanda mais tempo e esforço, sendo por isso de vital importância que durante esse período os credores não tomem conhecimento desse fato, sob risco de que a solicitação concursal seja apresentada primeiro por eles, e o concurso seja necessário e não voluntário.
Isso porque, para a lei uruguaia, é substantivo o “quem” realiza a solicitação concursal, pois:
- se for solicitado pela empresa devedora, provavelmente o Juízo não adotará medidas como as previstas no artigo 23 da LCRE (intervenção das comunicações; proibição de mudança de domicílio ou saída do país sem autorização). Em contrapartida, se for necessário, provavelmente sim as adotará.
- se for solicitado por um credor, o Juiz poderá aplicar o artigo 24 da LCRE, podendo dispor o embargo preventivo dos bens de seus administradores, se determinadas hipóteses forem cumpridas.
- se for solicitado pela empresa devedora, sempre que o ativo seja suficiente para a satisfação do passivo, não ocorrerá um deslocamento do órgão de administração (administrador e/ou diretoria), apenas será designado um interventor que co administrará os bens com a empresa devedora. Nestes casos, a empresa devedora precisará da autorização do interventor para alguns atos, mas não, por exemplo, para as operações ordinárias do negócio. Em contrapartida, se for solicitado pelo credor, conforme o artigo 45 da LCRE se “suspenderá a legitimidade do devedor para dispor e obrigar a massa do concurso, substituindo-o na administração e disposição de seus bens por um síndico”. Neste caso, apenas o síndico estará legitimado para realizar atos de administração e disposição. Claramente, isso é um ponto definidor, já que um deslocamento no órgão de administração leva a uma dependência quase total das decisões do síndico designado, demonstrando a experiência, a existência de critérios muito pouco uniformes em suas ações.
b) que a solicitação concursal não consiga cumprir com o objetivo traçado pela empresa: o concurso voluntário é uma ferramenta legal recomendada especialmente quando o propósito é reestruturar ou reorganizar os passivos, com o objetivo de alcançar a continuidade da atividade empresarial. E não como um recurso para alcançar o fechamento, encerramento ou dissolução. Mas se o que se busca é a continuidade, a experiência demonstra que a apresentação em tempo é chave para a obtenção do resultado desejado. De fato, a prática forense demonstra, repetidamente, como a imensa maioria das empresas que se apresentaram para se concursar tardiamente (mesmo sem solicitação prévia de nenhum credor) acabaram eventualmente fechando.
c) que o concurso seja qualificado como culposo e se imputem responsabilidades pessoais: a qualificação do concurso é uma etapa processual que se verifica em quase todos os processos concursais, com o objetivo de determinar se o concurso foi fortuito ou culposo, e em caso afirmativo as sanções aplicáveis aos responsáveis pela insolvência. Mas o artigo 196 da LCRE prevê a possibilidade de evitar a qualificação do concurso, nos casos em que por exemplo o concurso seja solicitado pela própria empresa devedora, e sempre que exista um acordo aprovado que permita a satisfação íntegra dos créditos em determinado prazo. Mesmo que não seja evitável a etapa judicial de qualificação concursal, é relevante que a empresa devedora cumpra com o ônus de solicitar seu concurso em tempo, seja para procurar que o mesmo seja qualificado como fortuito, seja para conseguir que mesmo sendo qualificado como culposo, não haja consequências sobre o patrimônio pessoal dos administradores da empresa devedora. No contexto atual, se a causa da insolvência tem sua origem na propagação do coronavírus COVID-19, é provável que a empresa possa provar a inexistência de dolo ou culpa grave na geração ou agravamento da mesma, alcançando uma qualificação fortuita do concurso que a isente das consequências previstas pela LCRE para os concursos culposos, ou ao menos isente parcialmente de responsabilidade pessoal os administradores das empresas concursadas, mesmo em hipóteses de uma qualificação de concurso culposo.
Quais benefícios possibilita a declaração judicial de concurso?
Sem prejuízo das vantagens descritas, parece relevante destacar que o concurso de credores é uma importante ferramenta legal que pode permitir às empresas devedoras, por exemplo:
a) uma reestruturação de parte importante de seus passivos: a LCRE estabelece três classes de créditos: a) os privilegiados especiais (créditos garantidos com penhor e hipoteca) e gerais (créditos trabalhistas, do BPS, por tributos nacionais e municipais); b) os quirografários ou comuns (por exemplo, a maioria dos comerciais); e c) os subordinados (nesta classe se encontram as multas e sanções de qualquer natureza e os créditos de pessoas relacionadas com o devedor). A ferramenta concursal reveste maior utilidade quanto maior for o passivo quirografário e subordinado, e menor for o passivo privilegiado. Respeito aos primeiros, a LCRE permite uma ampla margem de negociação entre as partes, com a finalidade de alcançar a subscrição de acordos que beneficiem todas as partes. Pois, conforme o artigo 139 da LCRE os acordos poderão ter como conteúdo: “quitas e/ou esperas, cessão de bens aos credores, constituição de uma sociedade com os credores quirografários, capitalização de passivos, criação de um fideicomisso, reorganização da sociedade, administração de todo ou parte dos bens em interesse dos credores ou ter qualquer outro conteúdo lícito … ou qualquer combinação das anteriores”. Estes acordos são alcançados por determinadas maiorias, mas serão obrigatórios para a empresa devedora e para a totalidade dos credores quirografários e subordinados.
b) uma paralisação das execuções individuais ou postergação dos credores com garantias hipotecárias ou penhorárias: a declaração de concurso impedirá que os credores da empresa devedora possam iniciar contra a empresa devedora procedimentos judiciais ou arbitrais. E as execuções que estejam em andamento, assim como os embargos ficarão suspensos. Inclusive respeito aos créditos penhorários e hipotecários, a LCRE prevê a proibição de iniciar novas execuções e a suspensão das execuções em curso por um prazo de 120 dias.
c) a conversão para moeda nacional das dívidas e reajuste das obrigações: declarado o concurso, os créditos expressos em moeda estrangeira serão convertidos para moeda nacional, salvo os créditos penhorários e hipotecários expressos em moeda estrangeira, até o limite de sua respectiva garantia. Além disso, a partir da data de declaração de concurso e até a data de pagamento, todos os créditos serão ajustados exclusivamente pelo Índice de Preços ao Consumidor (IPC).
d) a suspensão do vencimento de juros: desde a declaração de concurso, será suspensa a cobrança de juros salvo os créditos penhorários e hipotecários até o limite de sua respectiva garantia, e os créditos trabalhistas.
e) a possibilidade de rescindir unilateralmente contratos pendentes de execução: se existirem contratos dos quais derivem obrigações da empresa devedora pendentes de execução, esta terá a faculdade de rescindir unilateralmente o contrato, notificando este fato à contraparte.
f) possibilidade de reabilitar contratos que tenham caducado ou tenham sido resolvidos: a empresa concursada terá a faculdade de reabilitar por exemplo contratos de empréstimo, compras a crédito de bens móveis ou imóveis, promessas de alienação de imóveis a prazo, arrendamentos e créditos de uso, quando estes tenham caducado por descumprimento da obrigação de pagar o preço e/ou de realizar os pagamentos periódicos comprometidos.
Considerações finais
A ferramenta concursal (APR ou concurso voluntário) tem sido historicamente concebida pela maioria das empresas como a última opção em um cenário de dificuldade financeira. Isso tem levado a solicitações concursais extemporâneas que usualmente impedem a reestruturação financeira desejada, e consequentemente a continuidade do negócio empresarial. Por isso, e mais em tempos de COVID-19, a análise desta ferramenta legal de forma tempestiva pode ser decisiva.
Montevidéu, 10 de abril de 2020.